Nas últimas décadas, os sistemas energéticos passaram por, pelo menos, duas importantes transições. A primeira delas, na década de 1970, foi desencadeada num contexto de déficit de oferta de petróleo, motivando a busca por outras fontes de energia, resultando, no Brasil, na criação do Proálcool (1975), que intensificou a produção de álcool combustível (etanol) para substituição em larga escala de derivados de petróleo, como a gasolina.
A segunda transição, ainda em curso, ocorre após a celebração de vários tratados ambientais (Estocolmo-72, Montreal-87, Rio-92, Kyoto-97, Rio+10, Rio+20, Copenhague-2009), tendo o Acordo de Paris-2015 seu mais recente patrocinador, quando foram estabelecidas metas e recomendações para o enfrentamento da crise climática a partir de 2020, motivando a transição para uma matriz energética de baixo carbono. Dada a inexorável relação entre energia e desenvolvimento, o setor energético percebeu-se diante de uma encruzilhada.
O acordo de Paris, criado com a cooperação de 195 nações signatárias, defendeu, tal como os tratados anteriores, que o desenvolvimento sustentável[1] é inegociável e, portanto, não pode ser protelado. Seu objetivo foi assegurar que o aumento da temperatura média global fique abaixo de 2 °C (preferencialmente 1,5 °C) acima dos níveis da era pré-industrial. O acordo recomendou o apoio de países ricos à países em desenvolvimento para auxiliá-los na transição energética. Dezenas de países, incluindo o Brasil, estabeleceram como meta atingir a neutralidade de carbono até 2050. Ao final de 2020, o governo da China surpreendeu o mundo ao anunciar o compromisso daquele país, responsável por 27% das emissões antropogênicas de gases de efeito estufa (GEE) em 2019, em atingir a neutralidade de carbono até 2060.
Estamos em um momento especial, em que o país se prepara para a construção da “Estratégia Nacional de Hidrogênio”, após iniciativas anteriores que buscaram promover o desenvolvimento de tecnologias do hidrogênio e de células a combustível no Brasil. Os programas precursores foram o ProCaC, de 2002, e o ProH2, de 2005, que manteve o arcabouço estrutural do primeiro, mas efetuou ajustes conferindo maior amplitude ao programa. Ademais, documentos foram publicados em 2005 e 2010 sugerindo estratégias para o aproveitamento das vantagens competitivas do país, detentor de matriz energética diversificada, indicando a valorização de diferentes rotas tecnológicas (como a do etanol) no desenho de um roadmap nacional. Tais iniciativas foram, em certa medida, desestimuladas com a descoberta do pré-sal em 2006[2].
O hidrogênio, elemento mais abundante do universo, porém perdendo o pódio na terra devido a sua alta difusibilidade, forma o gás combustível (H2: hidrogênio molecular) com a maior relação energia/peso. Vetor energético limpo (sem átomo de carbono) e de largo espectro (multiuso), o H2 é conhecido por sua versatilidade no acoplamento de setores (energia, mobilidade, indústria, aquecimento), por atender a nichos da economia de difícil eletrificação, demandantes de altas densidades de energia, e pelo armazenamento sazonal escalável, atributo não contemplado em outras formas de armazenamento de energia como, por exemplo, em baterias de lítio-íon.
Na Resolução nº 2, de 10 fevereiro de 2021, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estabeleceu orientações sobre pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) no setor de energia, orientando a ANEEL e a ANP a priorizarem a destinação de recursos de PD&I segundo uma lista com oito temas afetos ao setor de energia, encabeçada pelo hidrogênio.
Já na Resolução nº 6, publicada em 17 de maio de 2021, o CNPE determinou a realização de estudo para a proposição de diretrizes para a elaboração do “Programa Nacional do Hidrogênio”, a ser publicado em 60 dias. Esse ato do governo acompanha o movimento mundial em torno do hidrogênio, notadamente entre 2018 e 2020, com a criação de programas de P&D, roadmaps e estratégias de governo de países como a França, Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Japão, Coreia do Sul e Austrália evidenciando o interesse de nações com grande demanda de energia neste vetor energético.
O hidrogênio verde (H2V), produzido pela eletrólise da água[3] com energia elétrica obtida por fontes renováveis, deve ganhar destaque no Brasil. Considerando que grande parte do custo total de produção do H2V refere-se ao custo do insumo “energia elétrica” necessário para o processo de eletrólise, o país sai na frente por apresentar matriz elétrica predominantemente renovável (82%, ANEEL-2021), sobretudo pelo grande potencial de geração hidrelétrica (61%, ANEEL-2021), mas também pela participação cada vez maior das fontes de energia renovável não convencionais dispersas, representadas por parques eólicos e usinas solar fotovoltaicas.
Atualmente, a produção do H2V apresenta custo algumas vezes superior ao da reforma a vapor de metano (SMR, em inglês), processo mais utilizado no mundo, mas que emite CO2, representando, portanto, o “hidrogênio cinza” (SMR sem CCS[4]). Porém, estimativas revelam que o custo de produção do H2V se tornará competitivo até 2030[5]. Ademais, no contexto do hidrogênio eletrolítico, é importante observar o grande potencial de aproveitamento do surplus de energia gerada pelas fontes de energia renovável, em especial das não convencionais dispersas. O excesso de energia renovável não absorvido pela rede, devido a momentos de picos noturnos de produção eólica e/ou em períodos próximos ao meio dia em usinas solares, pode ser desviado para a produção do H2V. Esse processo, construído em torno do conceito P2G (Power-to-Gas), surge como oportunidade para compensar o desequilíbrio entre a produção e o consumo de energia.
Os componentes de custo “energia elétrica”, tratado acima, e “CAPEX” representam as maiores oportunidades de redução do custo total de produção do H2V[6]. No componente CAPEX, o principal elemento é o eletrolisador. Para produzir o H2V a partir de sistemas eólicos e solar fotovoltaicos, utiliza-se o eletrolisador PEM (Polymer Electrolyte Membrane), caracterizado pelo uso de eletrólito sólido e produção de H2 com alto grau de pureza. Sua alta taxa de reação e alta densidade de corrente o torna mais adequado para fontes com geração de energia intermitente. Porém, o uso de metais preciosos, empregados como elemento catalítico no processo de eletrólise, eleva o custo do eletrolisador PEM, atualmente 30% superior ao do eletrolisador alcalino. Tecnologias mais recentes, como SOE (Solid Oxide Electrolysis) e AEM (Anion Exchange Membrane), ainda em escala laboratorial, prometem um passo adiante, intensificando discussões sobre escala, performance, custo e reversibilidade.
O H2 pode ser queimado de forma semelhante ao processo que ocorre em motores a combustão interna (MCI) dos veículos convencionais, produzindo energia, vapor d’água e NOx (óxidos de nitrogênio), não se classificando, portanto, como um processo zero emission, mas poluente do ar atmosférico. Embora a combustão direta do H2 tenha pouca aplicação, essa modalidade pode ser uma boa opção para a descarbonização de setores de aquecimento, hoje abastecidos pelo gás natural. Na maioria dos casos, o aproveitamento energético do H2 se dá por um processo eletroquímico, sem emissão de poluentes, realizado em células a combustível (CaC), reação denominada “combustão fria”. As CaC são utilizadas para gerar energia elétrica e calor, podendo ser empregadas na propulsão veicular (FCEV: Fuel Cell Electric Vehicle), com eficiência (tank-to-wheel) cerca de 30% maior que os MCI (limitados pela eficiência de Carnot), em sistemas de backup de energia, em sistemas de alta demanda de energia (peaking plants) e para geração de energia on site em unidades industriais e localidades rurais.
A produção e o uso industrial do hidrogênio no Brasil se encontram relativamente consolidados[7]. O hidrogênio é insumo químico para indústrias de fertilizantes (para produção de amônia), indústrias de refino de petróleo (para produção de gasolina) e indústrias de alimentos (para hidrogenação de óleos e gorduras). Aqui surge a primeira oportunidade. O Brasil, maior exportador de alimentos do mundo, com destaque para a região Centro-Oeste (47,5% da produção de grãos), pode reduzir a importação de fertilizantes nitrogenados e “limpar” a cadeia do agronegócio com a produção de amônia verde, obtendo, de quebra, ganhos logísticos significativos. É digno de nota que Furnas S.A. iniciou recentemente o comissionamento de sua planta de produção e armazenamento de H2V na UHE Itumbiara, ao sul de Goiás. Embora o principal objetivo seja avaliar a inserção do armazenamento de energia no SIN, outras aplicações para o H2V poderão ser vislumbradas sob a diretriz do Programa Nacional de Hidrogênio.
A nova agenda nacional do hidrogênio deve focar, sobretudo, no desenvolvimento de mercado para seu uso energético: transportes, geração de eletricidade, armazenamento de energia e insumo energético para processos industriais. Os FCEVs apresentam-se como alternativa no setor de transportes, permitindo autonomia e tempos de reabastecimento semelhantes aos dos veículos convencionais, atributos essenciais para o transporte de cargas a longa distância, expelindo apenas vapor d´água pelo escapamento. Pesam contra o alto custo de aquisição do veículo e do combustível (H2), mas, sobretudo, a rede de abastecimento extremamente limitada.
Numa outra via, o HVO (Hydrotreated Vegetable Oil) apresenta suas credenciais. Biocombustível de 2ª geração e representante mais significativo do “diesel verde”[8], o HVO é produzido pela rota tecnológica do hidrotratamento de óleos vegetais (incluindo óleos residuais, como o de cozinha) ou gorduras animais. Prometendo revolucionar o transporte de cargas, dado seu alto poder calorífico e baixo nível de emissão, se comparado ao biodiesel[9], o HVO, que cresce no mundo a taxas muito mais elevadas que o etanol e o biodiesel[10], se enquadra como combustível drop in, podendo abastecer motores de veículos pesados (ciclo diesel) sem a necessidade de adaptações. Além disso, pode ser adicionado ao diesel mineral em quaisquer teores, procedimento não contemplado pelo biodiesel[11].
Outra oportunidade no setor de transportes são os e-fuels (electrofuels), combustíveis sintéticos limpos (e-diesel, e-gasoline) gerados por fontes de energia renovável. No processo de obtenção do e-fuel, o H2V é combinado com CO2 a partir de gases emitidos por processos industriais ou pela captura direta do ar atmosférico para formar hidrocarbonetos com zero emissão líquida de GEE. Os e-fuels podem ser misturados gradualmente em combustíveis fósseis até que os substituam totalmente como fonte primária de energia, dando sobrevida aos MCI. Surgem como alternativa para preservar a frota de veículos convencionais do país no complexo processo da transição energética em curso.
No contexto do uso energético do H2, cabe ressaltar a potencial demanda internacional pelo H2V por países europeus (em especial pela Alemanha), que elegeram o H2V como meio para alcançar neutralidade na emissão de carbono até 2050, mas não conseguem atender às suas demandas internas de forma competitiva. A prioridade da União Europeia é desenvolver o H2 renovável (H2V) promovendo o aumento da eletrólise interna e externamente, tendo a mesma estabelecido uma meta de eletrólise de 40 GW, na Europa, e de 40 GW em outras partes do mundo até 2030[12]. Vultosos recursos internacionais serão aportados para reduzir o custo de produção do hidrogênio eletrolítico e mitigar o custo relacionado à logística (armazenamento, transporte e distribuição), apontado pelo PNE 2050 como uma das barreiras para a expansão do mercado de hidrogênio no Brasil, país que se posiciona, na atual conjuntura da transição energética, como um dos potenciais produtores, consumidores e exportadores de H2V para o mundo.
Ao que tudo indica, a agenda da simplest molecule como vetor energético foi antecipada de 2040/2050 para a atual década.
Aparecida de Goiânia – Goiás, 25 de junho de 2021.
[1] termo utilizado para definir ações e atividades humanas que visam suprir as necessidades dos atuais habitantes do planeta sem comprometer o futuro das próximas gerações.
[2] Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio, EPE, 2021.
[3] são necessários 9 l de água de pureza elevada para produzir 1 Kg de H2 (ou 11 m3 de H2).
[4] Carbon Capture & Storage (Captura e Sequestro de Carbono).
[5] Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio, EPE, 2021.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] a Resolução ANP Nº 842, publicada em 17/05/2021, estabelece a especificação do “diesel verde” e as obrigações de controle da qualidade a serem atendidas pelos agentes econômicos.
[9] biocombustível de 1ª geração, produzido pelo processo de transesterificação (biodiesel éster).
[10] Combustíveis Renováveis para Uso em Motores do Ciclo Diesel, EPE, 2020.
[11] Plano Nacional de Energia 2050, 2020, EPE. (https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Plano-Nacional-de-Energia-2050)
[12] A Hydrogen Strategy for a Climate-Neutral Europe, European Commission, 2020.